quarta-feira, 12 de novembro de 2008

AS NACIONALIZAÇÕES E O CHICO

No outro domingo, depois de uma noitada valente, acordei às seis da tarde e, como de costume, ainda sem óculos, liguei a SIC Notícias para ouvir o que se passava no mundo antes de o enfrentar. E comecei a ouvir os sons de uma conferência de imprensa solene, em que vozes institucionais ligeiramente familiares anunciavam com gravidade que em Conselho de Ministros extraordinário daquele mesmo domingo o Governo deliberara a nacionalização do Banco Português de Negócios, com efeitos imediatos, estando a preparar a proposta de lei para submeter com urgência ao Parlamento, e daí seguir para promulgação pelo Presidente da República.
Lembro-me que a primeira ideia que me ocorreu foi a de que a televisão devia estar sintonizada na RTP Memória, em que regularmente reproduzem aberturas de telejornais de há 10, 20 e 30 anos, e como tinha um jantar em Cascais, não dei importância, espreguicei-me e preguicei mais uns momentos, bebi um sumo de laranja, arranjei-me e saí.
Afinal, compreendi depois, a televisão estava mesmo na SIC Notícias, era tudo verdade, e a anacrónica nacionalização tinha mesmo sido decidida.
***
Tenho um amigo, que sem outra identificação vos digo que é o Chico, que tem hoje uma idade e um estilo de vida respeitaveis, mas que nem sempre levou a existência calma e tranquila com que hoje, humoradamente, relata o que a seguir vos passo a contar.
O Chico era um menino de boas famílias no tempo da outra senhora, gente latifundiária no Alentejo e com ligações várias ao antigo regime, e como era timbre dessa juventude, aberto a gozar de forma dourada os prazeres da vida e a respirar l' air du temps, sem grandes preocupações de qualquer ordem.
Provavelmente sem grandes veleidades de busca de sentidos ou de coerência ideológica, bebeu inspiração e deixou-se inebriar pelo Maio de 68, pelos Beatles, pelo Woodstock e quejandos, e andou na segunda metade dos anos 60 e na primeira dos anos 70, aproveitando para fugir à tropa, a deambular por esse mundo fora, a ver a Índia e Katmandu, a ser animador do Club Med em Marrocos e em Villar-sur-Olon, e a transgredir nas noites de Paris, caindo nos excessos das drogas da altura, julgo que a marijuana e o LSD.
Não precisava de trabalhar para viver, e perante qualquer dificuldade de maior bastava-lhe telefonar para Lisboa que, num abrir e fechar de olhos, lhe aparecia a solução em bandeja de prata.
Não posso fazer a apologia deste estilo de vida, mas a verdade é que, nalguns casos, produziu criaturas adoráveis, como é o Chico, cujo percurso o tornou um ser humano esperto, mundano, vivido, divertido, e com aquele sentido de humor que tudo relativiza, e que de outro modo não teria.
Por volta de 1973  o estado do Chico, então com cerca de 21 anos, era lastimoso pelos excessos do que tomava e fumava, e a sua respeitável família, numa estratégia de controlo de danos, houve por bem fazê-lo regressar imediatamente a Lisboa para pôr termo à sua vida ociosa e viciosa. 
Por aqui o Chico ainda começou por uns tempos a esboçar uma tentativa de vida profissional, à frente, com rédea curta, de uma das herdades do Alentejo, mas cedo voltou a frequentar alguns amigos e meios boémios de Cascais, e retomou abundantemente os consumos a que a família queria pôr termo.
Até que, não havendo sinais de emenda, o Pai e a Avó, em conselho de família, resolveram tomar uma medida drástica, e decidiram interná-lo para o reabilitar, ao que ele não teve outro remédio senão submeter-se, tendo o bom do inveterado Chico dado entrada numa clínica de desintoxicação para dependentes ali no alto da Almirante Reis no dia 23 de Abril de 1974.
Uma vez ingressado naquele asséptico lugar tão diferente dos ambientes a que estava habituado, o Chico resolveu enfrentar a sua condição com resignação, aceitando fazer a vontade ao Pai e à Avó que o patrocinavam, planeando submeter-se ao que lhe impusessem, para dali sair rápidamente e voltar à sua existência prazeirosa.
Foi-lhe explicado então pelo responsável médico, o Dr. X, que começaria por ser medicado para dormir por uns dias, em que seria alimentado a sôro fisiológico, por forma a que o organismo expurgasse as substâncias tóxicas de que era dependente, e que uma vez limpo se iniciaria uma tereapia de substituição gradual progressiva que, aliada a uma grande força de vontade, teria as almejadas virtualidades regeneratórias.
Ao que, a tudo, o Chico disse que sim, guardando como última memória a entrada num quarto branco, frio e despido, a toma de uma injecçção e a ingestão de umas cápsulas, o revirar dos olhos, e um embalo supersónico até à total inconsciência.
E, como disse o outro, assim ficou por quatro dias e quatro noites.
Quando acordou, viu-se sózinho no quarto, caiu imediatamente em si, levantou-se, viu-se e estranhou-se ao espelho, e desejou um cigarro. Então vestiu as roupas que encontrou, e resolveu sair à rua, e eventualmente fugir daquele lugar.
Desceu ao mundo e deu por si em plena Almirante Reis, em 27 de Abril de 1974: notou uma euforia e uma agitação inusitadas na rua e nas pessoas, achou a cidade muito desorganizada e barulhenta, as paredes dos prédios muito pintadas, a gente muito comunicativa, ouviu músicas que nunca tinha ouvido em altifalantes, viu agitarem-se bandeiras, achou tudo aquilo um filme muito estranho, e, naturalmente, julgou que estava a tripar!
Então ligou para casa e para a empresa e estranhou ninguém atender, apanhou uma camioneta para Évora, foi insultado à porta da sua herdade por gente que nunca tinha visto, veio um jipe da GNR e levou-o para a esquadra, onde foi atirado para uma cela onde acabou por adormecer vencido pelo cansaço e pela confusão total.
Lembra-se de, quando voltou a acordar, apenas lhe ter ainda ocorrido que não sabia o que o Dr. X lhe tinha dado na clínica da Almirante Reis, mas devia ser muito bom e muito potente, pois tinha sido a maior trip da sua vida até à data, maior ainda do que aquela que experimentara certa noite fria no Marais.
Pouco a pouco, naturalmente, refez-se; mas conta hoje que estes acontecimentos lhe tiraram então por completo a noção do tempo, não fazendo ainda hoje, a não ser pelo calendário, a mais pálida ideia de quanto, na sua vida, terá durado o período que medeou entre 23 e 27 de Abril daquele intenso ano de 1974.
E que o abalo foi tão grande, que na verdade o curou das suas dependências, a que não mais voltou, pelo menos na mesma escala.
Foi curado, não pelo apregoado e dispendioso método do Dr. X, mas, como diz, pelo método da Revolução, que simultâneamente lhe valeria não só a perda de grande parte das herdades, como ainda a sua própria prisão e de seu pai e tios.
***
Agora, quando acordo ao Domingo, antes de ligar a televisão, pelo sim pelo não, vou primeiro à janela ver se o mundo desabou ou se sou apenas eu que estou a delirar...

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