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A Delfina é uma grande amiga transmontana, de idade próxima à minha, com o cabelo pintado de loiro solto sobre as costas até à cintura, que hoje vive em Capeludos, na montanha perto de Chaves, mas que durante cerca de dez anos viveu connosco, pois veio trabalhar na minha antiga casa, e depois veio inaugurar a minha casa actual, quando me mudei para um andar alto de um prédio em Lisboa.
Pois a querida Delfina, nos primeiros tempos da casa nova recusava-se a andar de elevador, alegando medo, tendo largos meses galgado dez andares carregada de compras, dizendo que isto de elevadores é p'ró menino Vasco que está habituado a estas coisas da cidade, que lá em Chaves nunca andei em tal geringonça!
Foi uma guerra hercúlea para a levar a vencer a sua limitação, mas a verdade é que, determinada como era, e após se aventurar em várias subidas acompanhada, lá pelo Natal de 1996 superou, gostou e deixou de ter que vencer os vinte penosos meios lances de escadas para entrar em casa.
Uma bela manhã, dois meses mais tarde, morreu o vizinho do andar de baixo, e os gatos-pingados só conseguiram meter o caixão de pé no monta-cargas do prédio, deixando a porta fechar-se enquanto um deles descia para chamar o elevador e estivar o defunto.
Aconteceu que, à mesma precisa maldita hora, a boa da Delfina, desconhecedora do que se passava, preparava-se para ir à praça e, antecipando-se ao cangalheiro, chamou de cima o elevador, que naturalmente obedeceu primeiro ao seu premir do botão, e viu-o chegar através da luz no vidro fosco da porta durante a desaceleração e travagem da caixa ascendente.
Quando a máquina se imobilizou e ela abriu mecânicamente a porta, com o solavanco, o caixão abriu-se de par em par revelando o cadáver do velho em todo o seu esplendor, e tombou em direcção à Delfina, que, espavorida, gritou, atirando o carrinho das compras para um lado, a porta do elevador para outro, fugindo a sete pés para dentro de casa, e dando três voltas à chave.
Foram mais uns meses valentes até que voltasse a meter-se naquela coisa, nunca tendo deixado de ter visões da alma penada, com as mãos postas, em direcção a ela.
A Delfina era, e julgo que ainda será, um espírito dotado de grande curiosidade, e aproveitava sempre todas as suas folgas de domingo para, sózinha, ir logo de manhã, muito cedo, ver tudo o que a grande cidade tinha para a deslumbrar: foi sózinha conhecer a Expo 98, onde andou de teleférico (!!!), o Jardim Zoológico, toda a espécie de monumentos, a casa da Amália quando se tornou museu, e sei mais que rol de coisas e locais.
A verdade é que quando eu acordava das noitadas de sábado tinha invariavelmente um relato excitado das suas peripécias por essa Lisboa, que já fazia o meu prazenteiro programa de começo de domingo; e, não raras vezes, tinha também um mimo das muitas pastelarias da cidade, uns pastelinhos de Belém, ou outra ternura qualquer.
Certa manhã de Domingo, resolveu a loira transmontana ir conhecer o Museu de Cera, que tinha aberto recentemente ao pé da Doca do Espanhol, e que andava a ser publicitado por flyers nas caixas de correio e nos pára-brisas dos carros nas redondezas.
Nesse dia, quando acordei tinha uma Delfina lívida, ainda em estado de choque, e nada de pastelinhos de Belém.
Parece que à hora vespertina a que chegou ao Museu teve ainda que esperar que abrisse, e depois de pagar o bilhete, entrou e apercebeu-se que estava sózinha entre as figuras de cera ali representadas.
Ainda gostou de ver o Dom Afonso Henriques, o Dom Dinis, a Rainha Santa, o Condestável e a Padeira de Aljubarrota, Dom Pedro e Dona Inês, e constatou que as luzes dos corredores se iam acendendo à medida da sua passagem.
A última figura de que se lembrava era de Camões, com uma pala no olho e Os Lusíadas numa mão.
Segundo só consegui apurar algum tempo depois, o que aconteceu em seguida foi que a inefável visitante solitária do museu passou à figura seguinte, e confrontou-se nem mais nem menos do que com um gigante Adamastor enriquecido por um jogo de luzes interiores e de sons, que com uma transfiguração fantasmagórica e voz cavernosa lhe terá dito "mais além não passarás, pois só encontrarás tormentas!".
E ela não esteve de meios, perninhas para que vos quero, fugiu daquele lugar assustador, e só parou para olhar para trás à porta de casa, a meio da Infante Santo, figura que aliás não chegou a ver...
A Delfina voltou para a terra já há quase seis anos, para casar tardiamente, ao que pude assistir, mas foi daqui com a sua maior realização pessoal: a carta de condução tirada à primeira!
Hoje, falamo-nos com a regularidade das efemérides, mas nunca mais a vi, e tenho muitas saudades dela ...
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